A
harmonia entre autores, leitores e a Sétima Arte nem sempre é das melhores. Roald Dahl ficou tão frustrado com o filme ‘A
Fantástica Fábrica de Chocolate’, que decidiu jamais permitir uma adaptação do livro sucessor, ‘Charlie e
o Grande Elevador de Vidro’. J.R.R Tolkien
não viveu o suficiente para ver sua grande obra-prima, ‘O Senhor dos Anéis’, se transformar nos filmes mais premiados da
história do cinema entre os anos 2001-2003, e nem O Hobbit entre 2012-2014; mas no que depender de Christopher, seu filho,
‘O Silmarillion’ jamais terá uma versão cinematográfica. Segundo o herdeiro, os
filmes do Senhor dos Anéis “evisceraram [o livro] e o transformou em filme de
ação”.
Há
muito o que discordar de ambos. Apesar de Christopher Tolkien ter pontuado que
a comercialização tenha reduzido o valor estético e o impacto filosófico da
obra, é preciso esclarecer que o
problema não é o filme, afinal este também
possui um grande valor estético e filosófico para o Cinema, formato para o
qual o livro foi adaptado. Então,
onde estaria o problema? Ou, o que poderia ter levado Christopher à essa conclusão? Talvez os próprios leitores. Os mesmos que, no cinema, vibraram a cada
flechada de Legolas mas torceram o nariz para os aspectos descritivos da narração; que assistiram com vibração as longas sequencias de
luta em Minas Tirith, mas não leram com sensibilidade à poesia das canções e
poemas ao longo da narrativa criada pelo doutor em Letras e Filologia.
Mesmo
que estes leitores sejam uma exceção, ou mesmo que o Christopher Tolkien tenha
exagerado em sua colocação, tem se tornado perceptível uma banalização da experiência literária e cinematográfica. De um lado leitores que não se sentem completos
com o que leem e vivem a “mendigar” filmes baseados no seu mais novo livro
favorito como “complemento”. Do outro, o lançamento de um filme baseado em
algum livro famoso que provoca uma verdadeira corrida à leitura, sendo o objetivo ler o livro o mais rápido
possível antes de assistir ao filme. Como resultado, no dia da estreia os debates se concentram em quão
diferente o filme é do livro. Geralmente a sensação ao final desse processo
é que o livro deixou de ser lido como livro e o filme de ser assistido como
filme. E quando o filme não faz sucesso a opinião geral é: “não gostei, estava muito diferente do livro! Por que não fizeram
igual? ”.
Não
acho que nenhum leitor deve ter obrigação de gostar do filme, série ou peça
baseado em algum livro, afinal o gosto é subjetivo e cada um tem uma recepção diferente
de tudo o que ler, ouve e assiste. Entretanto, insisto na ideia de que o leitor precisa entender a literatura como procedimento diferente, e aproveitar os dois formatos sem dependências de um ou de outro, afinal, diferente do que
muitos propagam, os filmes não estragam
os livros, pois estes continuam intactos e prontos para serem lidos quantas vezes for necessário. Como
argumentação, proponho uma análise a partir da compreensão do conceito de literariedade.
Um livro possui linguagem diferente até
mesmo de outras linguagens escritas. De acordo com Victor Chklovski (1978), há
uma distinção entre a natureza da linguagem poética e a natureza da linguagem
prosaica (a linguagem do cotidiano), que é o procedimento utilizado por um
escritor para a elaboração da linguagem.
“E eis que para devolver a sensação de
vida, para sentir os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se
chama de arte. O objetivo da arte é dar
a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento
da arte é o procedimento da singularização e dos objetos e o procedimento que
consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da
percepção; a arte é um meio de
experimentar o devir do objeto, que já é “passado” não importa para a arte” (CKLOVSKI,
1978, p. 45).
Isso torna,
por exemplo, um texto noticiário diferente de um texto literário. Veja os
exemplos a seguir:
Enquanto
que o texto I é direto, com o predomínio de informações relevantes para um
leitor de jornal que queira ter o conhecimento dos fatos, no texto II há uma
articulação desautomatizada, onde detalhes que seria inúteis ao texto
jornalístico, conferem dramaticidade e ambiguidade
textual – aspectos apreciados no texto literário. Nele o autor se preocupou
com minúcias trabalhadas pela linguagem. A ambiguidade textual possibilita ao
leitor horizonte de interpretação variados. Por exemplo, nos livros não imaginamos
os lugares e nem julgamos as ações das personagens da mesma forma, por mais que estes sejam extremamente descritivos. Cada um de
nós traz, para cada leitura, tanto de nossa própria vida e própria perspectiva.
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Orthanc em diferentes interpretações e procedimentos artísticos |
Para enriquecer
mais esta análise quanto ao processo de adaptação de um livro para o cinema, acrescento
também compreensão da mimese, termo grego discutido por
Aristóteles e Platão que corresponde a ideia de imitação, representação,
ou seja, criar algo semelhante a outro, imitando-o. Sílvio Paradiso (2016), em
sua análise de A República, diz que
Platão acreditava que toda a criação humana já era uma imitação de algo pensado
no plano imaterial, das ideias. Para Platão, se todo mundo já era imitação, as
imitações dessas imitações (ou seja, as manifestações artísticas, escultura,
pintura, literatura, fotografia e etc.) seriam uma segunda mão.
A arte
escrita construída por um autor pode proporcionar informações e temas
da vida cotidiana que, mesmo no entretenimento e na ficção, provocam no leitor novas
perspectivas sobre a vida e da sua percepção do mundo. O cinema, em procedimentos diferentes, também.
Quando um livro é adaptado há uma imitação da ideia “original”, que passa a
assumir novas funções estéticas pertencente ao novo formato artístico. Nesse
contexto, nenhuma adaptação de Drácula
(Bram Stoker) poderá proporcionar a mesma experiência narrativa através de
diários e memorandos em primeira pessoa, isso cabe apenas ao livro.
A conclusão seria que todo filme adaptado de um livro é bom? Não, um filme tem sua própria crítica, baseada em critérios técnicos e também os subjetivos, de acordo com a experiencia de cada um. O que proponho, como conclusão, é que o leitor passe apreciar o livro como trabalho literário independente de uma transformação em filme, e que o filme passe a ser apreciado segundo suas possibilidades e peculiaridades e não apenas sob critérios de uma inviável semelhança ao livro.
REFERÊNCIAS:
REFERÊNCIAS:
CHKLOVSKI, Vcitor. A arte como procedimento. IN: Toledo, D.O. Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Porto Alegre: Globo, 1978;
ARISTÓTELES. Arte Poética. (Trad. Pietro Nassetti). São Paulo: Martin Claret, 2004.
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